quarta-feira, 20 de abril de 2011

No comboio

Ela dormia aninhada no comboio com duas camisolas já bastante usadas a servirem de encosto para a cabeça, tinha a esconder os olhos uns óculos de sol de ar de produção em série, e os calções curtos que usava permitiam reparar nas muitas picadas de insectos que tinha nas pernas de tez quase branca e nas quais sobressaiam algumas manchas de creme ainda mais brancas que a sua pele e que tapavam e talvez aliviassem o ardor de algumas das picadas. Tinha as unhas todas pintadas de vermelho mesmo as duas unhas dos dedos mindinhos dos pés as quais juntas não teriam mais de dois milímetro quadrado de área.

Sim é verdade, à quem diga que ter uma tez morena é que está na moda, que enroscar-se daquela forma num comboio não mostra civismo e bom senso, que se continua a deitar-se assim muitas vezes daqui a uns tempos está mas é com uma escoliose nas costas, que pintar assim de vermelho todas as unhas, até as mais ínfimas unhas dos mindinhos dos pés não tem qualquer assunto ou substrato, que talvez tenha um feitio mesmo difícil e até mesmo inquebrável, que pelo menos podia ter tido o feminino cuidado de espalhar adequada e homogeneamente o creme para as picadas, e que, mais que isso, eu agora nem os olhos lhe via, tapados que estavam por aqueles óculos de produção militar, e por fim, o mais grave de tudo, depois de tanto escrever, ousei não dizer sequer se Ela era bonita ou feia, e se afinal as pernas Dela eram ou não bem torneadas e encantadoras, pois bem, a beleza tem a particularidade de esconder e afastar os defeitos, as imperfeições e a barbárie, senão para sempre, por quanto tempo baste.

2 comentários:

  1. ora essa!
    o que disseste está bem certo e agradeço o comentário.
    que belas descrições que tens aqui

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  2. Nem sempre o que os olhos vêem o coração sente, e o que dizes só me faz pensar que de facto a sociedade está formatada para saber reconhecer o bem e o mal, e por mais bela que seja, por melhores pernas que tenha, os defeitos serão sobrevalorizados ao extremo... e pior... isto é o que acontece em diversas relações! Gostei da forma como descreves "o cenário"!

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